sexta-feira, 31 de maio de 2013

FAVELA


Não tenho vontade de "subir numa favela" para conhecer de perto aquele universo. Eu assumo e confesso: tenho medo. Não me sinto confortável naquele local. Vielas me dão claustrofobia. Acredito na existência da solidariedade entre os moradores. Sei que as comunidades pacificadas estão melhorando, sendo melhor observadas pela população, mas eu gostaria que os morros cariocas fossem desocupados, que o verde voltasse e que todos que lá hoje moram tivessem uma habitação digna. Recentemente li que o índice de tuberculose na Rocinha é tão alto que chega a ser o maior do mundo. Bem, como esta favela é a maior do mundo, não poderia ser diferente.

Está em cartaz às terças e quartas no Teatro do Leblon o espetáculo “Favela”. Faz um tempo assisti ao brilhante espetáculo “Avenida Dropsie” que era o dia a dia de acontecimentos e personagens num logradouro. Em “Favela”, temos um retrato fiel sobre o dia a dia de uma comunidade: o tráfico, a boemia do samba, os gritos das mulheres, o corre-corre das crianças, os dançarinos de charm, as mulatas passistas, os evangélicos e seu costumeiro Apartheid social, racial e religioso, a presença das religiões africanas e a fofoqueira de plantão. É engraçado observar que o traficante tem mais respeito pelo pai de santo do que pelo pastor dedo-duro. Em recente matérias jornalísticas vimos um pastor peixe-grande se aproveitar da humanidade dos fiéis para eventos nada religiosos e que, com o seu “poder da oração”, até conseguia liberar condenados a morte pelas mãos de traficantes.

O texto de Rômulo Rodrigues me fez lembrar do filme “Cidade de Deus”. Porém o humor impera nesta montagem onde os tipos estão muito bem escritos e todos verdadeiros. Os altos e baixos, risos e lágrimas, estão muito bem divididos mantendo sempre o bom tom, os palavrões necessários e a fidelidade com o linguajar local.

A direção é assinada por Márcio Vieira. Excelente a movimentação do elenco, o entra-e-sai competente, explorando o cenário ao máximo, com sequencias de cenas ao fundo do palco que ilustram acontecimentos já passados aos olhos do público. Explorando sempre a bagunça organizada que é uma favela, Marcio consegue dosar muito bem a hora das canções com a hora do falar sério. Mostrar que existe o preconceito com o favelado, o morador da comunidade, sem ficar constrangedor. Gosto muito quando ele isola a única menina menor de idade no palco, sem que ela participe das cenas pesadas. Consegue mostrar que a vida infantil é igual em qualquer lugar, independentemente de onde se vive. É uma direção pensada com carinho para que todo o elenco brilhe por igual.

A cenografia de Derô Martin é o grande luxo do espetáculo. Uma confecção inteligente de tecido com relevos em poliuretano, mostrando exatamente o tijolo mal assentado, as janelas reaproveitadas, a tramela na bancada do bar, as roupas penduradas qual bandeiras hasteadas, o colorido do vermelho tijolo que mostra a tensão constante em que se vive na comunidade. Muito original e criativo. O figurino de Caio Braga é bastante correto e tira partido das formas geométricas do elenco, sem com isso magoar ninguém, apenas mostrando a realidade do “não tô nem aí para aparência” que os moradores demonstram no seu dia a dia. A luz de Djalma Amaral é sempre bem cuidada. A colaboração da coreografia de Sueli Guerra é muito bem-vinda! Na parte musical, Arlindo Cruz compõe a música tema. Ninguém melhor que ele para esta tarefa, com apoio vocal de Pedro Lima na preparação do elenco. Claro que com muitos em cena, alguns ‘desafinos’ e desencontros vocálicos são inevitáveis. Mas no conjunto a sonoridade é muito boa.

Não dá para escrever especificamente sobre cada um dos atores. A participação de cada um é bem marcante e muito bem realizada. Todos com verdade e respeito ao tema abordado. Elenco funcionando muito bem no conjunto e na individualidade. Não pode-se deixar de gargalhar com a mulher que apanha do marido e vai pedir ajuda ao traficante para dar um corretivo nele. Nem deixar de lado a vizinha fofoqueira-rádio-plantão da favela. O filho preterido pela mãe evangélica, o menino que sonha em se formar engenheiro, a filha do pastor que se revolta, o pai de santo, os traficantes conectados... são muitos bons papéis e muito boas as interpretações.

Não sei se um dia terei a coragem de conhecer de perto uma comunidade, por mais pacificada que possa estar. É mais forte do que eu. Nem é preconceito. É medo mesmo e eu confesso. Assim como não pretendo pular de asa delta nem saltar de paraquedas, deixarei esta visita para uma outra encarnação. Enquanto isso, me divirto com estes personagens, nesta “Favela”, neste espetáculo que, certamente, terá vida longa, pela garra e competência de toda equipe.

Nenhum comentário: