Não tenho vontade de "subir numa favela" para conhecer de perto aquele universo. Eu assumo e confesso: tenho medo. Não
me sinto confortável naquele local. Vielas me dão claustrofobia. Acredito na
existência da solidariedade entre os moradores. Sei que as comunidades
pacificadas estão melhorando, sendo melhor observadas pela população, mas eu
gostaria que os morros cariocas fossem desocupados, que o verde voltasse e que
todos que lá hoje moram tivessem uma habitação digna. Recentemente li que o índice
de tuberculose na Rocinha é tão alto que chega a ser o maior do mundo. Bem,
como esta favela é a maior do mundo, não poderia ser diferente.
Está em cartaz às terças e quartas no Teatro do Leblon o
espetáculo “Favela”. Faz um tempo assisti ao brilhante espetáculo “Avenida
Dropsie” que era o dia a dia de acontecimentos e personagens num logradouro. Em
“Favela”, temos um retrato fiel sobre o dia a dia de uma comunidade: o tráfico,
a boemia do samba, os gritos das mulheres, o corre-corre das crianças, os
dançarinos de charm, as mulatas
passistas, os evangélicos e seu costumeiro Apartheid
social, racial e religioso, a presença das religiões africanas e a fofoqueira
de plantão. É engraçado observar que o traficante tem mais respeito pelo pai de
santo do que pelo pastor dedo-duro. Em recente matérias jornalísticas vimos um
pastor peixe-grande se aproveitar da humanidade dos fiéis para eventos nada
religiosos e que, com o seu “poder da oração”, até conseguia liberar condenados
a morte pelas mãos de traficantes.
O texto de Rômulo Rodrigues me fez lembrar do filme “Cidade
de Deus”. Porém o humor impera nesta montagem onde os tipos estão muito bem
escritos e todos verdadeiros. Os altos e baixos, risos e lágrimas, estão muito
bem divididos mantendo sempre o bom tom, os palavrões necessários e a
fidelidade com o linguajar local.
A direção é assinada por Márcio Vieira. Excelente a
movimentação do elenco, o entra-e-sai competente, explorando o cenário ao
máximo, com sequencias de cenas ao fundo do palco que ilustram acontecimentos
já passados aos olhos do público. Explorando sempre a bagunça organizada que é
uma favela, Marcio consegue dosar muito bem a hora das canções com a hora do
falar sério. Mostrar que existe o preconceito com o favelado, o morador da
comunidade, sem ficar constrangedor. Gosto muito quando ele isola a única menina
menor de idade no palco, sem que ela participe das cenas pesadas. Consegue
mostrar que a vida infantil é igual em qualquer lugar, independentemente de
onde se vive. É uma direção pensada com carinho para que todo o elenco brilhe
por igual.
A cenografia de Derô Martin é o grande luxo do espetáculo.
Uma confecção inteligente de tecido com relevos em poliuretano, mostrando
exatamente o tijolo mal assentado, as janelas reaproveitadas, a tramela na
bancada do bar, as roupas penduradas qual bandeiras hasteadas, o colorido do
vermelho tijolo que mostra a tensão constante em que se vive na comunidade.
Muito original e criativo. O figurino de Caio Braga é bastante correto e tira
partido das formas geométricas do elenco, sem com isso magoar ninguém, apenas
mostrando a realidade do “não tô nem aí para aparência” que os moradores
demonstram no seu dia a dia. A luz de Djalma Amaral é sempre bem cuidada. A
colaboração da coreografia de Sueli Guerra é muito bem-vinda! Na parte musical,
Arlindo Cruz compõe a música tema. Ninguém melhor que ele para esta tarefa, com
apoio vocal de Pedro Lima na preparação do elenco. Claro que com muitos em
cena, alguns ‘desafinos’ e desencontros vocálicos são inevitáveis. Mas no
conjunto a sonoridade é muito boa.
Não dá para escrever especificamente sobre cada um dos
atores. A participação de cada um é bem marcante e muito bem realizada. Todos
com verdade e respeito ao tema abordado. Elenco funcionando muito bem no
conjunto e na individualidade. Não pode-se deixar de gargalhar com a mulher que
apanha do marido e vai pedir ajuda ao traficante para dar um corretivo nele.
Nem deixar de lado a vizinha fofoqueira-rádio-plantão da favela. O filho
preterido pela mãe evangélica, o menino que sonha em se formar engenheiro, a
filha do pastor que se revolta, o pai de santo, os traficantes conectados...
são muitos bons papéis e muito boas as interpretações.
Não sei se um dia terei a coragem de conhecer de perto uma
comunidade, por mais pacificada que possa estar. É mais forte do que eu. Nem é
preconceito. É medo mesmo e eu confesso. Assim como não pretendo pular de asa
delta nem saltar de paraquedas, deixarei esta visita para uma outra encarnação.
Enquanto isso, me divirto com estes personagens, nesta “Favela”, neste espetáculo
que, certamente, terá vida longa, pela garra e competência de toda equipe.
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